Em janeiro de 1813, Rossini estreou a última das óperas que compôs para o San Moisè de Veneza, teatro que lançou a sua carreira. Era uma farsa em um ato, género de ópera cómica à época muito popular em Itália. Nesse período de aprendizagem, o compositor revolucionou o momento musical que servia de introdução às representações teatrais. Em particular, destaca-se na Abertura de Il Signor Bruschino o efeito sonoro produzido pelo bater dos arcos nas estantes dos segundos violinos. Na partitura autógrafa, Rossini escreveu «Dio ti salvi l’anima» (Deus salve a tua alma). Especula-se ainda hoje sobre o que terá dado origem a tão insólito recurso de orquestração.
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Por altura da transição entre os séculos XVIII e XIX, o Teatro San Moisè ainda era uma das agências mais dinâmicas em matéria de ópera cómica. Com quase dois séculos de existência, encerrou atividade em 1818, mas ainda houve tempo para revelar ao mundo Gioacchino Rossini, compositor que entre os 18 e os 21 anos de idade ali estreou sete óperas, das quais quatro eram farsas. Abriram-se-lhe logo de seguida as portas do La Fenice, onde deslumbrou o público com o melodrama heroico Tancredi. Para trás, ficava Il Signor Bruschino, uma produção bastante mais modesta e cujo enredo se resume em soluções dramatúrgicas desde sempre apreciadas no teatro de comédia: a sucessão de equívocos e a troca de identidades. Neste caso, o jovem apaixonado Florville faz-se passar por filho do Senhor Bruschino a fim de convencer o Senhor Gaudenzio a confiar-lhe a mão de Sofia, sua protegida.
Mais frequentemente, as Aberturas apresentavam os temas melódicos seguidamente cantados pelas personagens. Porém, Rossini preferia dar ênfase à surpresa e à vivacidade para despertar mais eficazmente a atenção do público. É disso exemplo esta Abertura, cujos ritmos enérgicos e partes rápidas alternam bruscamente com momentos de aparente serenidade. Sobretudo, a percussão dos arcos nas estantes era surpreendente. Com o passar do tempo, tornou-se distintiva. Já desde o século XVII se conhecia a técnica col legno, quando a madeira dos arcos percute as cordas. Tratava-se agora das estantes! No entendimento de alguns, era chocante, desrespeitoso e um requinte de mau gosto. Destaca-se a repreensão de um articulista do Giornale Dipartimentale dell’ Adriático, dizendo que a música de Rossini era tão desinteressante que chegava a ser ridícula. Fantasiaram-se muitas outras explicações, tais como a preguiça do compositor para escrever as respetivas notas ou – mais razoável – uma manifestação de protesto dirigida ao empresário Antonio Cera em virtude das restrições orçamentais da produção. Na verdade, não existe documentação que esclareça o assunto. Muito provavelmente, seria intenção do compositor cativar a atenção do público por intermédio de uma provocação benévola que ressoava no sentido lúdico do espetáculo. Demonstrava a criatividade, a irreverência e o enorme talento que tornaram o jovem Rossini, desde logo, num dos compositores mais requisitados pelos teatros de ópera italianos.
Rui Campos Leitão
Imagem: Gioachino Rossini cerca de 1817 | Pintura de Vincenzo Camuccini | Fonte: Wikimedia Commons